Análise de letra da música Somos Quem Podemos Ser - Engenheiros do Hawaii
Analisando uma de minhas músicas favoritas do Engenheiros...Talvez foi a primeira que eu ouvi, lá nos meus 10 anos de idade...Bom, para os mais chegados, segue o mesmo fluxo. Para os novos seguidores: letra em cinza, análise em verde ♥
Um dia me disseram
Que as nuvens não eram de algodão
Um dia me disseram
Que os ventos às vezes erram a direção
Um dia o véu da ignorância é rasgado, acontece com toda pessoa. Você é criança e vive num mundo cor de rosa, onde tudo é feliz e tudo é tão simples e passa a compreender que muitas coisas não são legais, o mundo ideal não existe. Normalmente acontece assim: alguém nos conta. Alguém nos dá um chacoalhão e percebemos que "as nuvens não são de algodão" aquilo que imaginamos não é real, nossas imaginações dão de encontro com a realidade. A parte do vento é um link que vou fazer mais pra frente, acompanhe o raciocínio.
E tudo ficou tão claro
Um intervalo na escuridão
Uma estrela de brilho raro
Um disparo para um coração
Para o cantor tudo ficou claro, as peças se encaixaram e a partir do momento em que ele tomou consciência e despertou da ignorância, foi uma luminosidade dentro de si mas ao mesmo tempo um tiro no peito com dor...Porque muitas vezes a ignorância é uma benção...Crianças por exemplo, vivem suas vidas felizes imaginando que o mundo é um lugar bom e seguro até o momento de descobrirem que o mundo é um lugar muitas vezes mau e hostil, com violência, fome, guerras...Isso nos causa dor.
A vida imita o vídeo
Garotos inventam um novo inglês
Vivendo num país sedento
Um momento de embriaguez
Nós
Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter
A vida imita a televisão, a vida imita a arte...As novelas são são tão novelas, retratam as nossas vidas. Alguns têm sede enquanto outros se embriagam...Uns têm muito e outros não tem nada. E nós somos apenas o que nós podemos ser, nem mais nem menos, mas podemos sonhar.
Um dia me disseram
Quem eram os donos da situação
Sem querer eles me deram
As chaves que abrem essa prisão
Somos presos pelo sistema, trabalhando e seguindo a corrida de ratos: nasce-cresce-trabalha-reproduz-morre. Muitos vivem uma vida em busca da liberdade e de um sentido para a vida, mas morrem sem conseguir realizá-la. Os grandes donos da situação, como por exemplo os políticos e grandes empresários, são pessoas e mundos inalcançáveis. Nos sentimos presos por não conseguirmos nunca alcançar este topo tão seleto, mas a partir do momento em que sabemos quem eles são, como vivem, se são felizes ou não, também temos conosco as chaves para sair da prisão, porque temos o conhecimento de como sair da roda.
E tudo ficou tão claro
O que era raro ficou comum
Como um dia depois do outro
Como um dia, um dia comum
Então aquela vida inalcançável, rara, de repente se torna comum, assim como um dia comum. A pessoa é como qualquer outra, que nasce,cresce e morre. Nada vai levar. Estamos correndo atrás do vento (o vento da parte inicial, que às vezes erra a direção).
A vida imita o vídeo
Garotos inventam um novo inglês
Vivendo num país sedento
Um momento de embriaguez
Os jovens inventam um novo inglês (os jovens estão sempre inovando e vivendo a felicidade antes de entrarem na roda. Eles vivem um momento de embriaguez de felicidade em meio a um país sedento que já não sabe o que é felicidade porque está imerso no sistema).
Nós
Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter
Um dia me disseram
Que as nuvens não eram de algodão
Um dia me disseram
Que os ventos às vezes erram a direção
Quem ocupa o trono tem culpa
Quem oculta o crime também
Quem duvida da vida tem culpa
Quem evita a dúvida também tem
Quem está no topo desse sistema falho tem culpa por manter o sistema falho, e quem sabe sobre o crime e o oculta também. Quem duvida de que a vida pode ser melhor e fora do sistema tem culpa e quem evita duvidar e segue o fluxo também. No fundo todos estão vivendo vidas medíocres por conta de um topo de pirâmide seleto, alguns outros subordinados que ocultam crimes dos do topo, os que duvidam de uma vida melhor e os que até mesmo preferem a ignorância e evitam duvidar. No final, sobram os jovens, que estão vivendo seu momento de embriaguez de felicidade até serem tomados pelo sistema.
Somos quem podemos ser
Sonhos que podemos ter
Enquanto isso eles podem ser o que puderem, e podem sonhar...
Bom, esta foi a minha análise de primeiro momento, analisando cada parte da letra. Agora vou fazer uma breve pesquisa na internet para ver o que outras pessoas analisaram e vou colocar aqui em baixo em roxo.
Amei a análise do Carlos Siqueira palavrasaleatorias, ele aprofundou muito mais (parabéns! Eu vou compartilhar uma parte da análise, cliquem no link dele para ver tudo):
" Interessante como, ao mesmo tempo, a banda brinca com ideias e imagens (fanopeia) ao dizer que “tudo ficou tão claro, como um intervalo na escuridão”, pois sabemos que a claridade/iluminação é uma metáfora para o conhecimento e saber, mas como o eu-lírico já estava falando sobre nuvens, fica, também, a imagem de nuvens se dissipando, terminando a escuridão. O próximo verso confirma a metáfora: “uma estrela de brilho raro, um disparo para um coração”.
Ao saber que as nuvens não eram de algodão, que as coisas não são como imaginamos ser, o eu-lírico foi iluminado pela luz de trás das nuvens; foi como um disparo em seu coração, que o fez despertar. Interessante a ordem dessas duas palavras: disPARO/ PARA. É como se fosse um eco do próprio disparo, que, aliás, ouvimos ao fundo.
Em seguida, no refrão, o eu-lírico deixa de falar sobre o passado e lança afirmações sobre o presente: “A vida imita o vídeo, garotos inventam um novo inglês/ Vivendo num país sedento, um momento de embriaguez,/ Somos quem podemos ser; sonhos que podemos ter”.
Após saber que as coisas nem sempre são como aparentam, ele percebe os problemas da sociedade, que vive o “parecer”. Ao invés da T.V, novela, filme, enfim, vídeo, retratarem e imitarem a vida, a vida e o povo são quem imitam o vídeo e a mídia. É uma inversão de valores (a mesma que faz com que os oprimidos queiram ser como os opressores — como diria Paulo Freire —, ao negarem sua cultura e realidade, que não são mostradas nos vídeos, na TV, para seguirem a única que é mostrada e valorizada). Aliás, por falar nisso, é assim que eles negam sua própria língua para criarem um “novo inglês”.
O eu-lírico percebe que vivemos “num país sedento, um momento de embriaguez”. Gostamos da ilusão, pois não queremos viver (ou não conseguimos perceber) a realidade. É impossível não se lembrar da frase do filósofo Nietzsche após conhecê-la:
Os povos só são tão enganados porque procuram sempre um enganador, isto é, um vinho excitante para seus sentidos. Contanto que possam obter esse vinho, contentam-se com o pão de má qualidade. A embriaguez lhes interessa mais que a alimentação — esta é a isca com que sempre se deixam pescar! (…) (NIETZSCHE, 2013, p. 221)."
A canção é de 1988, mas até hoje as pessoas estão embriagadas, até hoje imitam o vídeo (que as embriagam mais ainda); até hoje, por beberem demais, não percebem que seus semelhantes e vizinhos — e até eles próprios — sentem fome. Até hoje pensam que as nuvens são de algodão. O pão e o circo continuam a funcionar, mas sob outras formas.
Por fim, termina-se a estrofe com o eu-lírico dizendo que “Somos quem podemos ser; sonhos que podemos ter”, quebrando a ilusão de que somos o que queremos ser. Somos limitados pelo nosso meio, querer não é poder, como mente a mídia, com sua falsa meritocracia, ou os livros de autoajuda, com suas lições sobre empenho e fé. Não é porque queremos que as nuvens sejam de algodão que elas serão; não é querendo ser rico que se torna rico.
Como os Engenheiros disseram numa música do mesmo álbum, intitulada A verdade a ver navios: “É muito engraçado que todos tenham os mesmos sonhos e que o sonho nunca vire realidade”. Que o diga a maioria os meninos que desejam ser jogadores de futebol, para imitarem o que assistem na T.V/vídeo. Que o digam todos os cidadãos que querem apenas viver bem e dignamente, mas que não podem. Até os nossos sonhos são condicionados (pelo o que podemos ver).
Não podemos nos esquecer de prestar atenção na linguagem utilizada, pois é proposital e bem trabalhada, faz parte da riqueza da música. Temos, novamente, uma aliteração em /v/ : VIda/ VÍdeo, inVENtam, noVO, VIVENdo. E, também, uma paronomásia (palavras parecidas): Somos, sonhos.
Depois, volta-se à ideia do início da letra: o eu-lírico que não sabia (muito) sobre a vida, passa a saber. Assim como não sabia que as nuvens não eram de algodão, não sabia quem eram os donos da situação, mas depois que alguém disse/mostrou, passou a saber.
Novamente, a metáfora da libertação pelo conhecimento: ao dizerem quem é que manda na situação (que também manda nos vídeos, que, por sua vez, deixam o povo sedento e embriagado), sem querer o libertaram. Depois do ocorrido, tornou-se fácil (porque antes era “raro”) perceber as coisas ao seu redor, pois tudo ficou claro. Além disso, percebamos a ordem em que aparecem as sutis palavras, formando um jogo interno de vocábulos: “comum, Como um, como um, comum”. Repete-se o refrão e mais duas frases já proferidas.
Por fim, a última estrofe (e a mais rica, tratando-se de técnicas). No início, o eu-lírico falava sobre o passado, no qual passou de um não-saber para um saber. Depois começou a falar sobre o presente, o qual com a sua nova visão de mundo constatou algumas atitudes sociais. Agora, com todo o seu conhecimento, criou sua própria opinião e julgamento, que é a última estrofe.
“Quem ocupa o trono tem culpa / Quem oculta o crime, também; / Quem duvida da vida tem culpa; / Quem evita a dúvida também tem”. Culpa pelo o quê? Pela situação. A culpa não pode ser das vítimas, que somos nós, mas dos “donos da situação”, que estão no trono. No caso de um governo, a culpa é de todos os políticos; no caso da exploração dos pobres, quando não lhes pagam o que devem/deveriam, (quase) como escravidão, é dos donos/capitalistas das empresas.
Porém, tem culpa “quem oculta o crime também”. Aqui somos todos nós os responsáveis. Todos aqueles que veem o crime acontecer, as coisas erradas, os problemas, mas não falam e não fazem nada, também são culpados pela situação.
Quem duvida da vida, isto é, acha que as coisas não podem mudar, também são culpados. Este verso, junto do que diz que “os ventos às vezes erram a direção“, criam a contradição que foi citada no início do texto, pois aqui o eu-lírico diz, implicitamente, que as coisas podem mudar, criando conflito com o título da música e verso: “Somos quem podemos ser”, que demonstra o determinismo (seja lá qual for).
Entretanto, sempre há exceções. Era para o eu-lírico ainda acreditar que as nuvens eram de algodão, era para ainda não saber quem eram os donos da situação, mas graças a alguém que o ensinou, houve a quebra do paradigma. Agora é ele quem está ensinando o que sabe.
E, por fim, o último verso: “Quem evita a dúvida também tem”. Estes que evitam as dúvidas são semelhantes aos que ocultam os crimes, pois sabem de algo, mas preferem mentir e omitir. Ocultar crimes é crime também. Ao final, mostra-se que a situação, boa ou ruim, é criada por todos nós, não somente por um ou outro.
Esta última estrofe é uma demonstração de como se cria um jogo de palavras com tanta aliteração e paronomásias: oCUPA, CULPA, oCULTA, duVIDA, da VIDA, DÚvida, eVITA. Há, também, anáforas, usadas no início dos quatro versos, com a palavra “Quem”; no segundo e quarto verso, com “também”; e no final do primeiro e terceiro, com a palavra “culpa”.
Se quiséssemos falar mais, poderíamos dizer que, no primeiro e segundo verso da última estrofe há encontros consonantais, com as palavras “trono” e “crime”, exatamente no mesmo local: (n)a quarta palavra. E que é interessante terem usado as palavras “duvida” e “dúvida”, pois uma é verbo e a outra é substantivo. Coincidência, não tem nada a ver com o sentido da estrofe, mas VITA (que lemos em “evita”) é “vida” (palavra que foi usada no verso anterior) em latim.
A análise do Carlos ficou tão completa que vou deixar apenas a dele aqui...Cara foda demais, meu!
Espero que gostem desta análise ♥
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